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PhD em Química por Harvard faz pesquisa com alunos no ensino médio

A fala doce, baixinha e de sotaque carregado já dá a pista. Aquela mulher de aparência frágil, de não muito mais do que um metro e meio, tem o dom de contornar obstáculos. De família pobre de Franca, no interior de São Paulo, a professora de Química Joana D’Arc Felix de Souza estudou em apostilas emprestadas e, muitas vezes, dormiu com fome quando morava em Campinas, onde fez graduação, doutorado e mestrado na Unicamp. De lá, bateu asas para os Estados Unidos, onde concluiu seu pós-doutorado na Universidade de Harvard, uma das mais prestigiadas do mundo. A vida lhe pregou uma peça, e ela precisou voltar ao Brasil, onde, desde 2004, faz pesquisa de ponta com alunos do ensino médio na Escola Agrícola de sua cidade natal. Acha que ela se lamentou? Tratou de inovar e já tem, em parceria com os estudantes, 15 patentes nacionais e internacionais registradas.

Essa história surpreendente começou quando Joana tinha apenas 4 anos e acompanhava a mãe, empregada doméstica, no trabalho.

— Tive a oportunidade de começar a estudar bem cedo porque minha mãe era empregada doméstica — diz ela.

Se você procura alguma lógica nessa frase, esqueça. Poucas coisas na vida de Joana seguem o rumo “esperado”.

— Para eu ficar quietinha, minha mãe me ensinou a ler o jornal que chegava na casa. Sem estudo, minha mãe foi minha primeira professora. Ela só tinha até a 4ª série.

A patroa da mãe era diretora de escola do Sesi e surpreendeu-se quando viu que a menina, aos 4 anos, já lia. Com a ajuda dela, Joana começou o ensino fundamental naquela idade.

Ao concluir o ensino médio, decidiu que faria Química.

— Minha família morava numa casa no curtume em que meu pai trabalhava. O químico do curtume usava jaleco branco. Desde pequena, eu era apaixonada pelo jaleco e dizia: “Quero usar um desses”.

Estudando em apostilas emprestadas, passou nas três universidades estaduais de São Paulo: Unicamp, USP e Unesp.

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Joana Félix Foto: divulgação

‘Chegou a passar fome’, conta Joana

Joana escolheu estudar na Unicamp, em Campinas. Com a ajuda do pai e do patrão dele, foi morar num pensionato. O dinheiro era contado para o transporte e uma refeição ao dia no bandejão:

— Eu guardava o pãozinho para ser o meu jantar. Às sextas-feiras, pedia mais pães para o fim de semana. Era tudo.

Joana conta sobre essa fase de sua vida sem nenhum traço de amargura.

 

—Cheguei a passar fome, mas decidi vencer pelos estudos. Meu pai dizia: para atingir seus objetivos, tem que passar pelo sacrifício. Quem não nasce em berço de ouro tem que arregaçar as mangas. Se você desistir, nunca vai chegar lá.

E ela chegou. Ao terminar o doutorado na Unicamp, recebeu um convite para fazer pós-doutorado em Harvard. Seu orientador sugeriu que ela levasse um produto nacional para estudar. O pai deu a ideia de trabalhar com resíduos do curtume, um passivo ambiental importante para Franca, a Capital do Calçado. A indústria coureira local gera 218 toneladas de resíduos por dia.

Desde então, os resíduos de curtume são sua matéria-prima. A partir dessa lama, desenvolveu mais de 20 projetos.

Cientista tem 15 patentes registradas

As 15 patentes registradas por Joana, no entanto, não foram desenvolvidas nos laboratórios de Harvard, mas nas bancadas do curso técnico de curtimento da Escola Agrícola de Franca, do qual é coordenadora.

— Minha intenção era ficar nos Estados Unidos. Mas, com um ano e meio de curso, minha irmã morreu. Um mês depois, meu pai também teve um enfarte fulminante. Minha mãe, muito doente, ficou com meus quatro sobrinhos, então com 2 meses, 1, 3 e 4 anos. Terminei o curso e, em 1999, e voltei para ajudá-la — conta.

Joana fez concurso para professora na Escola Agrícola Técnica Professor Carmelino Corrêa Júnior, onde a maioria dos alunos é como ela, de origem humilde. Sua chegada revolucionou o colégio. Com bolsas da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), implantou a iniciação científica no colégio.

A pedagoga Roberta Real Suaroz, de 33 anos, que foi uma das bolsistas de Joana, guarda na memória a paciência e a persistência da mestre:

— Nunca a vi perder a calma. O meu projeto não dava certo, e ela dizia: “Você tem que fazer dar certo e, se tiver que tentar mil vezes, faça mil vezes”. Ela não desiste nunca.

Os inventos

Pele artificial – Pele artificial para ser transplantada em casos de queimaduras. O projeto foi premiado na Genius Olympiad 2017, da Universidade do Estado de Nova York Oswego, onde foi apresentado pelos alunos.

Cimento ósseo – Cimento ósseo que usa o colágeno do couro reciclado de resíduos das indústrias coureira e pesqueira.

Fertilizante – Fertilizante a partir de resíduos de calçados. O processo também recicla corantes, barateando seu custo de R$ 250 o quilo para R$ 2. Desenvolvido com o sobrinho mais velho, hoje cursando faculdade de Química, o invento ficou em segundo lugar na Genius Olympiad 2014.

Filtro de escamas – Sistema de filtragem com escamas de peixe.

Tecido para hospital – Entre os cerca de 20 projetos atuais, Joana começou a pesquisar, com uma aluna de 14 anos, um tecido antimicrobiano para lençóis e roupas de hospital. O objetivo é reduzir infecção hospitalar.

Fonte: Jornal Extra